José Agostinho, o cientista que quis mudar o seu tempo
A cidade de Angra dos anos 60 e 70 do século XX era uma cidade fora do seu tempo.
Sei-o bem porque foi nela que me fiz gente. Recolhida nas suas feridas de guerra, empurrada
para o controle do Atlântico Norte, nos finais da II Guerra Mundial e a viver o
choque duma guerra no Ultramar demasiado cruel, a cidade parou, como que a aguardar
que toda esta turbulência imposta passasse, para voltar a si e ao seu tempo. Chegavam
laivos dos avanços que mudavam o resto do mundo, nos aviões que a sobrevoavam,
nos cartões picotados dos computadores instalados algures ou nos concertos de Jazz
das bandas em viagem para palcos maiores, mas era como se fosse um mundo à parte,
visto por uma janela hermética de vidro. Angra mantinha-se no seu silêncio, de velhas
tradições, de rituais ancestrais. Chegavam, timidamente, as primeiras lojas de pronto a
vestir e jogava-se à bola nas ruas da cidade, as mesmas ruas que José Agostinho, na sua
volta diária percorria, para regressar, com regularidade britânica, a casa, na parte alta
da Pereira, sozinho, solitário e introspetivo. A esta velocidade, marcada pela cadência
da chegada mensal do "vapor", o ato de procurar ou ter, em Angra, uma carreira criativa,
uma formação avançada ou de fazer Ciência, parecia uma impossibilidade, quando a
Biólogo, Ecologista Vegetal
fonte de informação era uma Biblioteca e
Arquivo, mais o último que o primeiro, e
tudo o resto estava a semanas de distância,
por cartas incertas. Não admira, pois, que
as bibliotecas pessoais fossem instrumento
de trabalho e uma rede de amigos pelas
capitais, fosse a chave.
José Agostinho era militar, Tenente-Coronel, no final da sua carreira, como a
maioria das grandes mentes que viveram
em Angra nesse período, sinal de um país
em guerra, onde a comunidade académica
se encontrava recrutada em missões do
Estado. E as suas áreas de trabalho certamente
que cruzaram o seu interesse pessoal com o interesse da nação: num território
estratégico no controle do Atlântico Norte, onde a aviação despontava, o conhecimento
do clima e das suas tendências, para não falar na utopia da previsão meteorológica, tornavam-
se num elemento estratégico e essencial. Foi um marco para mim, então jovem
estudante, à procura do conhecimento da natureza dos Açores, a primeira leitura dos
seus textos sobre o clima dos Açores na revista Açoreana. Constituem, ainda hoje, a
série de cinco artigos, que começam com "Clima dos Açores: Generalidades" de 1938, e
terminam com "Climas de altitude nos Açores" em 1947, um documento surpreendente
e singular de Ciência feita nos Açores e com o objetivo de entender o meio açoriano,
na sua particularidade de espaço insular num imenso oceano. Este trabalho vai além da
típica descrição, primeiro passo em muitas áreas do saber até então (lista de plantas,
descrição de espécies, médias climatéricas, etc.), e apresenta uma interpretação dos resultados, com explicações que permitem perceber a singularidade do meio açoriano.
Mas atreve-se ainda mais longe, ao avançar para a modelação, ultimo passo no conhecimento
científico, a capacidade de previsão (a sua proposta do aumento da precipitação
por cada 100 metros de altitude foi usada durante muitos anos, como única forma de
estimar a precipitação nas montanhas). É uma atitude arriscada, delicada, para os
dados disponíveis na altura, mas essencial naquilo que pensamos ser a estratégia e a
motivação de Agostinho, na sociedade dos Açores. Talvez se deva considerar que, em
determinada altura da sua vida, Agostinho sentiu a necessidade de criar uma ponte
entre a sociedade e a Ciência. Angra, em particular, e os Açores, em geral, precisavam
da Ciência e da tecnologia para darem um salto em frente, colocando-os no mesmo
caminho do desenvolvimento que muitos outros territórios europeus e americanos já
tinham alcançado.
Não é, por isso, inocente que, embora sendo Agostinho um militar de carreira,
homem para quem a Ciência ao serviço das estratégias militares fizesse todo o sentido
(por exemplo, movimentação da atmosfera no Atlântico Norte e os voos militares),
tenha decidido terminar a sua série de artigos sobre o clima, não com um trabalho nessa
área mas sobre as consequências do conhecimento do clima para a Agricultura e, por
extensão, lançar as bases para um novo paradigma num setor essencial no crescimento
dos Açores. "A Ciência ao serviço das gentes, como motor do desenvolvimento e da
inovação" são palavras que nos soam hoje quase triviais e óbvias, mas que em 1940 não
espelhavam o pensamento vigente e ainda menos, no esforço de quem fazia Ciência,
para os fins abstratos do Estado Novo. Há, pois, um objetivo humanista, social e altruísta
para com os seus concidadãos, de contribuir para a mudança, colocando a Ciência
ao serviço do modernismo, tão essencial na altura.
É bom lembrar que, nestes anos de que falamos, no fim da carreira de José Agostinho,
não existia ainda Universidade dos Açores e os maiores centros técnico-científicos
se distribuíam pelas chamadas Juntas Gerais, instrumento do poder central de Lisboa,
pelos Observatórios Meteorológicos das três cidades e por um punhado de autodidatas,
ligados ao ensino secundário e aos poucos Museus. "Investigador" era palavra
que não fazia parte do nosso vocabulário, "cientista" era coisa das Américas, ligada às
idas à Lua e ao nuclear. O conhecimento dos Açores, seu território, valores e recursos
dependiam, quase exclusivamente, dos cientistas visitantes ou dos interesses estratégicos
da guerra (a Terceira tem a primeira
cobertura aérea fotográfica, realizada em
1943-44 pela Royal Air Force, com a qual
o Tenente-Coronel José Agostinho montou
o primeiro (orto)fotomapa da ilha,
hoje repositório do Museu de Angra do
Heroísmo). No resto, tínhamos uma agricultura
essencialmente familiar, um setor
florestal importante, mas de sobrevivência
endógena, depois da desarborização
brutal provocada por duas guerras mundiais,
uma indústria para consumo interno,
de pequenos grupos (com exceção
de alguns conhecidos em São Miguel) e
um analfabetismo alargado, quase generalizado,
tirando as elites urbanas. A sobrevivência
em cada dia ditava mais alto do que qualquer reflexão filosófica ou sequer
a leviandade de pensar que, na Ciência e na Tecnologia, poderia estar o futuro das
novas gerações.
Foi assim que conheci o Tenente-Coronel José Agostinho. Primeiro, ao vê-lo passear, hirto, pela Rua da Miragaia acima, ao fim da tarde. Depois, ao cumprimentá-lo
com profundo respeito, quando comecei a ler os seus trabalhos, na Biblioteca e Arquivo
de Angra e, finalmente, ao visitá-lo, na sua residência, na tentativa de receber alguma
orientação, quando me pareceu motivador, mas difícil de concretizar, uma carreira na
Ciência. Mas os nossos tempos estavam demasiados distantes para que pudesse recolher
conselhos úteis ou sentir um incentivo pela Ciência.
José Agostinho era um sábio. Era um sábio porque tinha de ser, porque fazer Ciência
nos Açores, isolado de todas as fontes, obrigava a recolher todo o conhecimento que
se podia e sempre que se podia. Talvez nunca saberemos se a sua procura e interesse
por estudar tantas áreas do conhecimento, no território dos Açores, da Avifauna à
Botânica, da Geologia à Geografia, e tantos outras, pelas quais percorria as ilhas, recolhia
informação e se esforçava por compreender, se devia à sua natural e insaciável
necessidade de conhecer, se à tentativa de completar os seus modelos de interpretação
do clima dos Açores (aves e ventos, orografia e clima, etc.), se à sua responsabilidade
como Diretor do Serviço Meteorológico dos Açores, ou, ainda, se para dar resposta à
imensa rede de contactos internacionais que mantinha e que certamente lhe davam
respostas, mas também levantavam muitas perguntas sobre estas ilhas.
O que sabemos é que, em certa altura, Agostinho sentiu necessidade de partilhar o
seu conhecimento com os seus concidadãos açorianos, de colocar o seu saber ao serviço
de uma sociedade que carecia de mudar e de evoluir. Numa sociedade iletrada e com
baixos índices de leitura, os artigos escritos, mesmo em revistas como a Açoreana, não
seriam o canal certo, perdidos que ficariam nas prateleiras das bibliotecas. Era preciso
chegar a todos, de forma e em linguagem que todos pudessem compreender; que a
mensagem fizesse sentido, contribuísse para a compreensão do mundo, dos problemas
e dúvidas do dia a dia. A rádio (numa terra sem televisão) pareceu a melhor solução
e o Rádio Club de Angra, ouvido no Grupo Central, o melhor veículo. Tornou-se um
acontecimento marcante, estas palestras radiofónicas e tiveram um impacto imenso
ainda mal compreendido, na sua total dimensão. Pela primeira vez, a Ciência saiu à
rua e deu instrumentos de compreensão dos Açores, dos seus fenómenos, da realidade
tangível a cada um dos açorianos. Foi, em muitos casos, a primeira explicação alternativa
que as pessoas ouviram, com coerência científica, sobre fenómenos naturais, sobre
as suas dificuldades em gerir recursos ou em entender a terra insular.
Mas, mais do que isso, mais do que dar respostas, mais do que saciar curiosidades,
do que entreter ou acalmar as mentes, estas palestras tiveram a oportunidade de abrir
as portas para um mundo moderno, um mundo
onde a Ciência podia dar respostas, não
por opções políticas ou porque sempre se fez
assim, mas porque o acumular de factos e a
capacidade de entender o universo açoriano
apontam como o mais sensato. Tiveram, também,
o condão, como a divulgação da Ciência
tantas vezes faz (mesmo nos dias de hoje),
de abrir consciências, de libertar as mentes,
de fazer sentir a cada pessoa que pode ter o
conhecimento, pode fazer a diferença. Numa
sociedade como a de então, elitista, com falta
de acessos à formação e ao conhecimento, cultivando
um certo servilismo, não foi só, mas
foi parte da profunda transformação da sociedade
açoriana e da cultura de um povo, que
varreu todos os setores da vida nos Açores,
nos últimos 60 anos e fez deles o que são hoje.
Eduardo Dias, Biólogo, Ecologista Vegetal