É certo que já foram um só, mas hoje são dois: o
Ilhéu Grande e o
Ilhéu Pequeno. Também houve cabras, mas em muito menor número e terão desaparecido há muitas décadas,
1 ficando apenas nos ilhéus ovelhas e carneiros.
2 O nome
Ilhéus das Cabras surge no decorrer do século XIX e, ainda assim, no início do século XX a imprensa ainda utilizava o nome de “Ilhéu do Canto”, família ao qual pertenceu durante muitas gerações.
Os ilhéus na historiografia insular
Embora existiam outras, ficam aqui algumas das descrições mais significativas a estes ilhéus, que podemos encontrar na historiografia açoriana. A mais antiga referência, sem no entanto lhes atribuir nome, é de Gaspar Frutuoso em finais de 1500:
“Correndo do Porto do Judeu pera a cidade de Angra, com rocha alta e costa de grosso calhau e penedia, um terço de légua, está um grande biscoito prantado de vinhas e pomares [Serretinha], defronte do qual estão dois ilhéus, um de três moios de terra, outro como a metade deles, divididos um do outro tanto espaço, que poderão entre ambos passar navios, e entre eles e a terra naus da Índia, que distam uma légua do Brasil [Monte Brasil] fronteiros ao porto de Angra, e afastados do pé da costa tanto como meia légua, muito abundantes de pescados e marisco, onde há cracas, por serem de pedra de tufo, e os barcos fazem grandes pescarias. Nos quais houve também muitos coelhos e agora, em seu lugar, há matos e muito barcéu [Bracel], que vão lá buscar para os bois, e criam neles pombas e muitos pássaros do mar, como são estapagados, garajaus e gaivotas, de que se acham muitos ovos. São estes ilhéus altos, mas pequenos e, além do barcéu, têm feno e mato de louros carrasquenhos.”3 É frei Diogo das Chagas quem deles fala algumas décadas depois, por meados de 1600:
“[…] está uma ermida de Nossa Senhora da Esperança. Avante um pouco, está a Igreja do Glorioso Santo António que é paróquia da freguesia do Porto Judeu, ambas estas igrejas ficam ao longo da rocha calhau do mar, fronteiras aos nomeados Ilhéus do Porto Judeu, não porque pertençam a alguém dessa freguesia, que eles são do Capitão da Ilha, mas porque ficam seus vizinhos”. Maldonado, no início de 1700, é quem primeiro apresenta a denominação pela qual são hoje conhecidos:
“No dia 9 de abril apareceu de manhã junto aos ilhéus das Cabras que ficam fronteiros ao lugar do Porto Judeu uma alterosa nau […]”. Emiliano de Andrade, mais generoso nas palavras, faz por volta de 1840, as seguintes observações sobre estes ilhéus:
“Os mais notáveis são os dois chamados das Cabras, situados uma légua a leste do Monte Brasil, e a uma milha da costa em frente da Feteira. Estes dois ilhéus apesar de serem mui contíguos um ao outro estão entre si tão profundamente divididos que pelo meio deles não só passam grandes barcos; mas ainda há tradições de por ali ter passado já sem risco um grande navio. O maior, que conterá três moios de campina, elevando-se do mar pela parte do norte por um terreno íngreme, e de difícil subida, coberto de verdura, forma em seu cume uma vasta planície cheia de pastagem e cortada por uma altíssima rocha alcantilada; o segundo muito mais baixo, e de menor extensão oferece ainda em seu vão uma grande caverna marítima onde se podem conter mais de vinte pequenos barcos. […]
Nestes ilhéus se criam os melhores carneiros da ilha e se pescam as melhores cracas, mariscos de um suco deliciosíssimo.” Drummond repete um pouco o que diz Emiliano de Andrade, acrescentando: “O maior […] coberto de ervas muito prestadias com que sustenta grande rebanho de gado lanígero, que nele se cria de extraordinária corpulência. O segundo muito mais pequeno e baixo tem uma planície de 8 a 10 alqueires de terra, por vezes tem sido cultivado, mas a subida para ele não é fácil. […]
Por divertimento, e interesse de colher alguns mariscos e peixe, vão lá alguns barcos no verão. Nestes ilhéus se colhem os mais excelentes mariscos, a saber: lapas, caranguejos e cracas, e por isso são frequentados em estação própria.” Também a estes se referiu Nemésio: “[…]
quebrados pelo meio como um pão mal tendido, suficientemente afastados da terra para que pudessem passar por um país estranho… - em todo o caso, outra plataforma talvez só própria para bichos (os de seu nome) […].
Eu, que tinha a mania da geografia fantástica, chamava-lhes a Terra do Perrexil, - a plantazinha rasteira, de folha carnuda como a da beldroega, que se curtia num frasco e nos servia de pickles.”
A importância deste ecossistema
Os Ilhéus das Cabras situam-se a 27° 09’ W e 38° 38’ N. Estão afastados da costa pouco mais de 1100 m, a sul da Serretinha, lugar da freguesia da Feteira, a cerca de 15 minutos de viagem do porto de Angra do Heroísmo. Tem uma área total de 28,18 ha e altitude máxima de 147 m (ilhéu Grande) e de 84 m (ilhéu Pequeno). São hoje parte integrante do Parque Natural da Terceira classificados como
Área Protegida para a Gestão de Habitats ou Espécies dos Ilhéus das Cabras (TER07), mas amealharam ao longo dos anos outros estatutos de proteção ambiental: são
Domínio Público Hídrico (1971),
Reserva Ecológica Nacional (1990),
Zona de Reserva Integral de Apanha de Lapas (1993),
Important Bird Area (2003),
Zona de Proteção Especial (2006 -
Rede Natura 2000) e
Geossítio - Ilhéus das Cabras (2010). É assim um local de relevância nacional, com interesse científico e geoturístico.
Em termos de génese e geomorfologia, sobre este que é o maior ilhéu do arquipélago, diz o Prof. Francisco Cota Rodrigues da Universidade dos Açores:
“Os ilhéus das Cabras resultam de erupções submarinas que ocorreram no flanco sul do vulcão dos Cinco Picos. O centro emissor localizou-se numa falha submarina transversa associada ao rift da Terceira, uma zona de expansão da crusta terrestre que se desenvolve desde Santa Maria até ao Rift Médio Atlântico, a noroeste da ilha Graciosa, limitando a microplaca dos Açores da placa Euroasiática. Estas erupções, que terão ocorrido há sensivelmente 22000 anos, pouco profundas e muito explosivas nas suas fases finais, deram origem a um cone vulcânico hidromagmático, i.e. a uma pequena ilha de tufos, de forma sensivelmente circular. Sucederam-se uma série de movimentos de origem tectónica, os quais, aliados a processos erosivos, terão desmantelado parcialmente o primitivo cone e originado as duas parcelas de terreno que vemos e que ainda hoje sofrem essa ação. Hoje os ilhéus das Cabras são constituídos por essas duas pequenas ilhotas, o ilhéu Grande e o ilhéu Pequeno, separadas na sua menor distância por um estreito canal com escassos 110 m de largura e mais de 20 m de profundidade. Os ilhéus são constituídos por tufos palagonitizados, que exibem níveis de deposição com estratificação cruzada, característicos da atividade vulcânica do tipo surtseiano. Esses tufos surtseianos apresentam-se muito soldados e compactos, impondo forte resistência à erosão. A intensa palagonitização das obsidianas presentes nestas formações é responsável pela coloração amarelada do material rochoso que aflora no alcantilado das arribas. A reiterada fracturação vertical dos tufos, resultante da presença de falhas ativas, aliada à abrasão marinha, originou uma série de cavidades, algumas das quais subaquáticas, destacando-se a Gruta Brisa Azul ou dos Ratões e a Gruta dos Piratas.”
Nas expedições que fizemos tivemos também a oportunidade de constatar a presença de fragmentos rochosos intercalados e incrustados no tufo, principalmente nas faces mais aprumadas viradas ao mar, mas também no topo do
Ilhéu Grande, que foram arrancados das chaminés e condutas interiores do aparelho vulcânico e projetadas durante a erupção. Apresentam uma cor bastante escura e muitas vezes dimensões bastante superiores aos vulgares paralelepípedos das nossas calçadas.
A superfície do talude rochoso do
Ilhéu Pequeno apresenta algumas pequenas áreas quase vidradas, bastante mais lisas e brilhantes que o tufo. São depósitos de cor esbranquiçada constituídos por calcite e sílica amorfa. A sua formação resulta de processos hidrotermais associados ao vulcanismo inicial que formou os ilhéus e à circulação de águas mineralizadas nos períodos subsequentes.
Observam-se escavados no chão, nos depósitos terrícolas das encostas norte dos ilhéus, um número significativo de ninhos de Cagarros (
Calonectris borealis). Embora seja também possível observar a presença de um ou outro Garajau a voar junto ao ilhéu, mas as colónias nidificantes desta espécie no ilhéu são diminutas. Observam-se ainda indivíduos de outra avifauna, residente ou ocasional nos ilhéus, como é o caso das abundantes e predadoras Gaivotas (
Larus michahellis atlantis) que infelizmente procuram os ilhéus também para nidificação, e do Pombo-da-rocha (
Columba livia atlantis). São ainda referidas outras espécies como tendo ido observadas, mas que são meras curiosidades: a Garça-real, o Pilrito-das-praias, o Borrelho-de-coleira-interrompida e o Maçarico-galego. Curiosamente existe uma população de codornizes de dimensão apreciável no ilhéu grande. De entre os mamíferos é indicada a presença do Morcego-dos-Açores (
Nyctalus azorium) que imagino seja ocasional. Há muitos fragmentos de ossos no
Ilhéu Grande. Há crânios que penso serem de rato, embora não os veja vivos no ilhéu. Há vários tipo de aranhas, gafanhotos e outros insetos, e ainda conchas de caracóis.
Em termos florísticos os Ilhéus das Cabras são relativamente pobres, quer em diversidade, quer na importância atribuída às espécies de plantas vasculares que lá crescem. Aqui e ali há depósitos terrícolas onde é possível crescerem determinadas plantas, mas noutros locais os afloramentos rochosos, batidos pelo vento, estão completamente despidos de vegetação. No verão as gramíneas tem geralmente os colmos secos e as outras espécies as hastes florais também secas. Ainda assim é foi possível identificar indivíduos de:
Avena sp.,
Polypogum maritimus,
Setaria pumila (?),
Bromus sp.,
Digitaria sanguinalis,
Holcus lanatus, e um único feto:
Pteridium aquilinum. Quanto a dicotiledóneas foi possível observar:
Tetragonia tetragonioides,
Solanum nigrum,
Lavatera cretica,
Rumex sp.,
Atriplex sp.,
Urtica sp.,
Salpichroa origanifolia, Coniza canariensis,
Ecbalium eulaterium,
Portulaca oleracea,
Daucus carota (?),
Lagenaria vulgaris,
Ficus carica e algumas mentas. Os únicos endemismos que encontrámos foi a
Euphorbia azorica e a
Festuca petraea. Há líquenes, mas não parece haver briófitos. As maiores surpresas foram mesmo: uma figueira que é a única árvore que se encontra nos ilhéus; as vulgares cabaceiras, hoje tão difíceis de encontrar na ilha; e o pepino de São Gregório, muito raro no litoral da ilha Terceira, mas comum no ilhéu. A fauna submarina em redor dos dois ilhéus, compreende diversas espécies de peixes e pequenos cetáceos, tartarugas e outros. Diz quem tem experiência, que esta diversidade biológica e as condições favoráveis para o mergulho tornam os Ilhéus das Cabras num local privilegiado para atividades subaquáticas recreativas e para a investigação científica.
Gruta Briza Azul ou Gruta dos Ratões
Uma volta em redor de ambos os ilhéus permite ao visitante aperceber-se de diversas grutas que tiveram origem em fraturas naturais, fragilidades surgidas aquando da formação dos próprios ilhéus ou posteriormente em consequência de movimentos tectónicos, potenciadas pela ação erosiva do mar. A mais interessante destas é a conhecida Gruta Briza Azul ou Gruta dos Ratões, situada no ilhéu Pequeno, com a abertura virada a norte sobre a ilha Terceira. A mais antiga referência a esta gruta está na obra de Emiliano de Andrade, de 1843:
“À porta desta furna voltada ao noroeste da entrada, há uma extensa câmara vulcânica cujo pavimento é um profundo mar cheio de peixes, cercado e coberto de uma abóbada de lava amarela petrificada, que na sua maior altura excede muito 30 pés acima da água. Por esta mesma porta entram os barcos e neles se corre todo aquele escuro antro por não haver dentro algum lugar onde se possa desembarcar.” Sobre ela diz ainda Drummond:
“Tem em seu vão uma formidável caverna, para a qual se entra por uma boca à maneira de portão. É uma câmara vulcânica com mais de 60 pés de altura acima da água, e nela podem recolher-se, sobre profundo e escuro mar, vinte ou mais barcos de pesca.” Já era de se esperar algum exagero nas descrições históricas registadas por quem provavelmente nunca foi ao local… Digamos que tem metade da altura referida por Drummond e não será uma tão “formidável caverna”.
Esta gruta era, no entanto, já bastante conhecida pelos homens do mar quando foi explorada pela primeira vez pela Associação os Montanheiros a 28 de agosto de 1971 e batizada de
Briza Azul, nome de uma das embarcações da expedição. A abertura com a maré baixa apresenta uns confortáveis 4 metros de altura e pouco menos de largura, o que permite a uma embarcação entrar com alguma segurança. A gruta tem cerca de 50 m de comprimento e 10 m de largura máxima. A altura máxima depende da maré, mas andará perto dos 7 a 8 m. Penso que o nome de
Gruta dos Ratões, nome pela qual hoje é mais conhecida entre os homens do mar, possa ter surgido mais tarde, com a prática do mergulho no seu interior e a constatação da presença de ratões das espécies
Myliobatis aquila e
Taeniura grabata que para aí se deslocam. É fácil a uma embarcação de 7 m entrar no interior, o que não deve ser incentivado porque a turbulência da água perturba à fauna submarina, pelo que se aconselha apenas o mergulho. No interior da fenda o fundo está a cerca de 15 metros de profundidade.
Uma outra fenda, no lado norte do
Ilhéu Grande, permite ao mergulhador nadar 240 m através do ilhéu (não sem alguma dificuldade e risco), saindo do outro lado no interior de uma outra gruta que está no canal entre os dois ilhéus, também com dimensões que permitem a entrada de pequenas embarcações.
Os donos dos ilhéus
Ernesto do Canto refere que os Ilhéus das Cabras foram doados por el-rei D. Manuel a Pero Anes do Canto, provedor das armadas, que faleceu em 1556. Versão diferente tem Drummond quando refere que no ano de 1574 o donatário da parte de Angra, Manuel Corte Real, lhe disputava a posse e, ou porque vencesse o pleito ou porque el-rei doasse o ilhéu a um seu descendente, o certo é que andou anexo ao morgado dos Cantos “que nele tem grande quantidade de ovelhas”. Os ilhéus pertenceriam em 1666 a Braz Pires do Canto pelo que um descendente deste, Miguel do Canto e Castro Pacheco de Sampaio, a 26 de fevereiro de 1872 reclamou a posse destes ilhéus por terem
pertencido sempre a seus ascendentes, passando como bens vinculados de sucessor em sucessor até recaírem nele, tendo conseguido registá-los a seu favor em 1873. Ao falecer sem filhos, herdou-os sua irmã e por morte desta em 1890 deixou em testamento os referidos ilhéus ao Dr. Eduardo Augusto da Rocha de Abreu que os regista em seu nome apenas a 11 de fevereiro de 1905.
Em 1908 o Dr. Eduardo Abreu teria anunciado em jornais estrangeiros a venda dos ilhéus. Tinha recebido uma proposta de compra de um cidadão norte americano J. Stephens e de arrendamento por parte da “Marconi’s Wireless Telegraph Company” de Londres, durante 99 anos ao preço de 2.000 libras por ano, com o direito de opção de compra de 50.000 libras em ouro ou 33.000 ações da mesma companhia. Também se dizia que, em virtude da abertura do canal do Panamá e da posição geoestratégica dos Açores, conviria à América ter ali dum depósito de carvão ou mesmo aproveitar os ilhéus para algo diferente. Aliás, a compra dos ilhéus pelo governo dos Estados Unidos da América foi algo que chegou mesmo a vir “confirmado” pelo jornal londrino
Pall Mall Gazette. Eduardo Abreu apressou-se a desmentir tal informação, mesmo porque nunca tinha recebido qualquer proposta desse governo nesse sentido.
Hoje, quem conhece os ilhéus, não percebe como terá sido possível tal interesse, tendo em conta as condições naturais do terreno. O certo é que, à época, o facto suscitou uma reação por parte do governo português que terá escrito a Eduardo Abreu pedindo
preferência na compra, para impedir a venda ao estrangeiro. Eduardo Abreu, sensível a esta questão, depois de ter aguardado algum tempo, acaba no ano seguinte por notificar o Governo português no sentido de concretizar a aquisição dos
ilhéus do Canto, de que era já proprietário o seu filho Henrique de Abreu. Depois de tanta celeuma, nunca se concretizou a venda ao Estado Português nem tampouco a doação que a família acabou propondo e, por volta de 1911, os Ilhéus das Cabras acabariam por ser adquiridos pelo pai de José Luís Evangelho, residente na Ribeirinha, por 10 contos. Em 1948, José Luís Evangelho comprou a parte dos ilhéus que tocava aos irmãos por herança, tendo sido os ilhéus avaliados em 80 contos. Passadas algumas gerações, hoje pertencem aos herdeiros deste.
A posse administrativa
Ao longo dos anos houve vários decretos que mudaram a fronteira entre as freguesias de Feteira e do Porto Judeu, colocando os ilhéus numa ou na outra freguesia. Até 1906 os ilhéus da Cabras faziam parte da freguesia do Porto Judeu. Nesse ano a Feteira foi elevada a paróquia, mas em jornal dessa altura, que trazia algumas das áreas que passaram a integrar a nova freguesia, não está lá os Ilhéus das Cabras. O decreto de 28 de janeiro de 1911 do Ministério da Justiça, considera que a delimitação da freguesia da Feteira, quando foi criada, tinha sido feita de forma arbitrária, trazendo inconvenientes vários às populações e à administração, pelo que vinha agora proceder a retificações, nomeadamente incorporando na Feteira os ilhéus das Cabras, pelo que se depreende terem sido da freguesia do Porto Judeu até esta data, mesmo depois da criação da Feteira. Seguiram-se vários decretos tendo o último, de 30 de abril de 1928, reposto os limites da freguesia da Feteira tal como quanto tinha sido formada, ou seja, sem os ilhéus das Cabras, situação que perdurou até aos nossos dias.
A exploração ovina
O papel direto do homem na alteração da paisagem dos ilhéus sempre foi insignificante. O mesmo não se pode dizer da pastorícia a que os sujeitaram, que terá causado alterações relevantes na biodiversidade local, facilitando a chegada de novas espécies ruderais e eventualmente o desaparecimento de algumas nativas. Uma conversa com Mariazinha Cardoso e Vítor Evangelho, dois dos atuais proprietários dos ilhéus, permitiu perceber como se processou durante as últimas décadas a exploração de ovelhas nos ilhéus.
No mês de maio de cada ano, quando o mar ficava mais calmo e oferecia boas condições para navegar e atracar, vários elementos desta família juntavam-se e seguiam até aos ilhéus. Contratavam habitualmente o serviço a uma família de pescadores do Porto Judeu, que levavam pelo menos duas embarcações, uma de maior porte e outra menor para o transporte entre a maior e os ilhéus. O barco maior transportava não só a família mas também tosquiadores contratados para esse serviço, que se fazia uma única vez no ano. Sem um cais acostável que facilitasse a manobra, desembarcar pessoas e bens nos ilhéus nunca foi tarefa fácil, e iniciar a subida também não. Por isso houve a necessidade de talhar degraus na encosta que, apesar de desgastados pela erosão, são ainda hoje visíveis, principalmente no ilhéu pequeno.
Desembarcados no ilhéu, subiam os mais jovens em direções opostas e, no alto, cercavam as ovelhas levando-as a descer até um local específico, a meia encosta, que fazia as vezes de curral. O rebanho era então contado para se saber quando adultos tinham desaparecido, quantas crias tinham nascido, quantos machos e fêmeas havia. Acreditava-se que algumas das ovelhas desaparecidas eram roubadas por barcos que visitavam os ilhéus. Os animais que eram para tosquiar eram peados. Os excedentários também o eram para poderem ser transportados para o barco e trazidos para terra, aproveitando-se assim para renovar o efetivo. Fazia-se ainda outra viagem em setembro para contar novamente o número de animais e garantir a presença de apenas um carneiro cobridor, ou para substituí-lo se houvesse necessidade disso. Ficavam nos ilhéus algumas dezenas de animais durante todo o ano.
Tosquiava-se em maio, para alívio dos animais na época mais quente do ano e porque era a altura em que se começavam a desenvolver os cardos, permitindo assim apanhar a lã numa altura em que estava mais limpa. A tosquia e demais operações levavam horas, pelo que não podia faltar o garrafão, o queijo e o pão para ir merendando. Enquanto decorria a tosquia a lã era transportada para o barco maior e, quando se justificava, este ia descarregar no cais do Porto Judeu. O barco acabava por fazer várias viagens para levar toda a lã e, no final, transportar os animais excedentários e as pessoas. Parte da lã depois de cardada e fiada acabava em teares na ilha Terceira, mas a maioria era vendida para a ilha de São Jorge, como
lã suja, chegando por vezes a ser enviada também para Lisboa, mas como
lã lavada o que obrigada a uma maior preparação desta matéria prima. Mariazinha Cardoso refere que a exploração das ovelhas e da respetiva lã era um bom rendimento, e que há 40 anos ainda era uma atividade lucrativa.
Afirmava Nemésio que os ilhéus possuíam “uma cisterna salobra e meia dúzia de carneiros”. Os proprietários, no entanto, não se lembram de qualquer reservatório de água nos ilhéus. Apesar das ovelhas sobreviverem com pouca água, ainda assim tinham de beber alguma e, durante séculos a única que havia disponível era a escassa água da chuva, e a salgada que ficava temporariamente retida em pequenas covas sempre que a maré baixava. Há quem diga que, sendo obrigadas a beber água salgada durante todo o ano, estas ovelhas deviam ser já de uma
raça especial. Entre 1990 e 1994 não houve ovelhas nos ilhéus, mas nesse ano de 1994 houve um repovoamento, reintroduzindo-se no ilhéu um rebanho de 60 ovelhas de uma raça inglesa, que vieram da ilha Graciosa. Para melhorar as condições dos animais, foi construído nesse ano, pela primeira vez, um tanque de água no
Ilhéu Grande, para receber as águas da chuva. Com paredes em blocos e cobertura de vigotas e abobadilhas a água ia passando do tanque para um bebedouro construído ao lado, apenas na medida do necessário em virtude da instalação de uma boia de nível que controlava a passagem. Passados uns anos a tanque ficou seco e inutilizado, ao que me dizem por culpa dos cagarros. Estes terão escavado a terra junto ao alicerce para fazer ninhos, acabando este por ceder, rachando as paredes. Esta tentativa de reexploração dos ilhéus durou cerca de 10 anos, pois, numa visita em 2004, já só havia vestígios de ovelhas.
Um óbito nos ilhéus
Entre as lendas que envolvem estes ilhéus temos aquela que nos deixou Ferreira-Deusdado. Diz-nos que na última metade de 1600 um tal de Fernão de Hutra de 20 anos de idade, natural do Faial, se enamorou por uma jovem freira no Convento da Glória dessa ilha e, para conseguir conquistar a jovem, fez um pacto com o diabo, prometendo-lhe a alma de todos os filhos que viesse a ter. A virtude da freira manteve-se firme, saindo derrotado Fernão de Hutra que veio então desgostoso para Angra. Em 1666 tentando seduzir uma das filhas de Jorge de Betancor, alcaide-mór do Castelo de S. Sebastião, envia-lhe um ramo de flores. O pai sabendo disso e que Fernão de Hutra tinha
a sua prole vendida a Satanás, decide com o seu cunhado Braz do Canto, dono dos ilhéus das Cabras, desterrar para lá o dito Fernão. No dia 16 de julho foi secretamente amarrado e levado para o ilhéu pequeno, onde o esperava uma
“cabana rústica ou uma caverna na penedia vulcânica para morar, ovelhas que davam leite, um algibe [cisterna]
que dava água, silvas que davam amoras e um barbante com anzol para pescar.” Fernão de Hutra aqui teria vivido isolado durante 7 anos e aqui morrido. Ferreira-Deusdado acrescenta sobre o ilhéu:
“Ainda hoje lá existe uma cisterna que recebe água pluviais”… e esta é a única referência de que alguma vez os ilhéus tenham sido
habitados!
Do roubo dos carneiros a um achado histórico
Linschoten no seu “Itinerário” refere que em novembro de 1589 barcos ingleses que andavam junto à ilha, à espera de saquear a prata que vinha das índias ocidentais, lançaram ferro
“a meia légua do ancoradouro de Angra, perto de duas ilhotas que ficam a cerca de um tiro de camelo da ilha, as quais estão cheias de cabras, bodes e carneiros dos habitantes da ilha Terceira, coisa bem sabida destes marinheiros. Saíram em terra com os seus batéis, ficando confortavelmente ancorados o dia inteiro, e tiraram de lá tantos carneiros e cabras quantos precisaram, à vista de todos os da ilha e da cidade, sem que eles fizessem nada para o impedir ou ousassem sair com um navio.”
Conta-se também que, aquando da Guerra Civil portuguesa, a esquadra miguelista que movia o bloqueio à ilha Terceira sem dela se apoderar, por provável necessidade de mantimento terá desembarcado também nestes ilhéus uma pequena força que, aí sim, se apoderou de 130 carneiros que por ali pastavam. Ao que se diz, houve demanda por justiça durante muitos anos, sendo o governo constitucional condenado a pagar uma indemnização ao coronel Francisco do Canto e Castro, dono que foi dos ilhéus durante boa parte do século XIX. Esse mesmo acontecimento é relatado décadas antes, embora sem quantificar o número de animais furtados, por Drummond:
“O certo é que depois daqueles navios andarem vários dias ensacados nas baías da ilha, e quase sempre na da Praia, […]
desapareceu destas águas, deixando o governo da ilha em perfeita tranquilidade, contentando-se o comandante da nau com ter recolhido a bordo algumas pessoas comprometidas […]
; e de ter recolhido também alguns carneiros do ilhéu do Porto Judeu, que teve em segura conquista.”
Em 1992 foi encontrado por José Gabriel “Tirolé” no
Ilhéu Grande a parte final de um croque, peça em bronze que se soltou da respetiva vara de madeira e que se mantém ainda hoje na sua posse. Encontrava-se no meio da erva, a 5 ou 6 metros acima do nível do mar, numa reentrância da rocha. Teria esta peça estado neste local cerca de 160 anos e pertencido a uma das embarcações da frota miguelista que participou no roubo dos carneiros? Ou pertenceria a alguma embarcação que operava na baía de Angra do século XX?
Uma perseguição naval em torno dos ilhéus
Uma das histórias que eram contadas entre pessoas de mais idade, e que também me foi contata por familiares, é a de um barco que se teria refugiado de outro que o perseguia entre os dois ilhéus. Confesso que sempre tive dúvidas quanto à veracidade deste acontecimento, mesmo porque parecia que a história ia sendo “adaptada” ao longo dos tempos: ouvi-a como tendo ocorrido durante a Grande Guerra e também durante a II Guerra Mundial. Também a ouvi como tendo acontecido entre dois barcos ou entre um barco e um submarino. Afinal, parece que esta história, apesar de fracamente documentada, poderá mesmo ter ocorrido pelos anos de 1862/63, em plena Guerra Civil americana, entre os Estados Confederados do Sul e a União dos Estados do Norte.
Numa primeira versão encontramos um relato de 1909, que refere um confronto entre os barcos
Alabama e
Kearsarge. O
Alabama era um barco de madeira pequeno e rápido, de 1040 toneladas e com um comprimento total de 64 metros, expressamente construído para a marinha dos Estados Confederados da América. Funcionava a vapor, com dois motores a carvão de 300 hp cada, e com o início da guerra civil, foi destinado a ser adaptado e apetrechado como canhoneira, transportando as armas e munições necessárias para entrar na guerra contra a União dos Estados do Norte da América. No dia 10 de agosto de 1862 o
Alabama navegou até aos Açores baixando âncora na baía da Praia da Vitória. Aqui esperou pelo
Agrippina, que vindo de Londres lhe forneceu armas e munições. No dia 20 de agosto chega à baía da Praia o
Bahama. Rumam de seguida os 3 barcos para Angra onde fundeiam no final desse dia. Aqui o Capitão Semmes deixa o
Bahama e assume o comando do
Alabama para o qual tinha sido destacado. A 24 de agosto, depois de se abastecer de carvão e víveres deixa a baía de Angra, arreia a bandeira inglesa com que navegara até então e hasteia a bandeira confederada, assumindo finalmente a missão de ataque e destruição para a qual tinha sido destinado. Nos 3 anos que se seguiram viria a capturar 65 embarcações mercantes da União, feito mais de 2000 prisioneiros, sendo perseguido por 20 navios de guerra dos Estados do Norte da América, esquivando-se sempre com mestria àqueles que o perseguiam e sem nunca perder um único elemento da sua tripulação. Da mesma forma como perseguia, também o
Alabama era perseguido por barcos de guerra dos Estados do Norte da América, entre os quais o
Kearsage. Várias notícias surgem nos jornais da época da presença destas duas embarcações em águas dos Açores, beneficiando da neutralidade de Portugal neste conflito, fundeando um e outro por diversas vezes na ilha Terceira e noutras, aguardando um que o outro levantasse âncora e zarpasse para se iniciar mais um episódio de perseguição.
De facto, o relato da perseguição do
Kearsage ao
Alabama envolvendo uma passagem entre os ilhéus surge escrito apenas em 1909, 47 anos após o suposto acontecimento. Segundo notícia da época, é oferecido a um almirante de uma esquadra americana um quadro a óleo pintado por Henrique Abreu, à época proprietário dos Ilhéus das Cabras. Esse quadro apresentava a perseguição que o
Kearsarge movia ao Alabama tendo os ilhéus como cenário de fundo. O quadro chegou a Nova Iorque, tendo o
New York Herald feito uma reprodução acompanhada do seguinte texto, provavelmente escrito com base numa mensagem de Henrique de Abreu que acompanhava o quadro:
“É a evocação de um singular episódio naval da guerra dos Estados unidos, entre os Estados do Norte e os do Sul (1862), ocorrido nas águas da ilha Terceira, quando o Alabama, perseguido pelo Kearsage, atravessa o estreito canal dos dois ilhéus do Canto e, iludindo a carreira em que este o seguia, assim se salvou.” Cândido Forjaz teve na sua posse uma reprodução fotográfica desse quadro, que publicou num artigo crítico que escreveu sobre este tema.
As notícias sobre a oferta desta tela terão provavelmente ajudado a prolongar no tempo esta interessante história, mas de facto Henrique Abreu não conheceu nenhum destes navios. Terá ouvido da “voz do povo” esta história dos “ilhéus salvadores”. Refira-se que muito tempo antes Drummond dizia sobre os ilhéus:
“É tradição de antigos, que ali se refugiaram 12 barcos de pesca procurados por um corsário argelino” e Jerónimo Emiliano de Andrade: “[…]
estão entre si tão profundamente divididos que pelo meio deles não só passam grandes barcos; mas ainda há tradições de por ali ter passado já sem risco um grande navio.”
Mas será que foram de facto estes os barcos envolvidos? De acordo com a única notícia contemporânea aos acontecimentos que lemos, publicada num jornal em julho de 1863, poderá ter sido outro barco que não o Alabama:
“Na noite de 17 entraram no porto desta cidade dois vapores, vindos do Fayal, o inglês Juno, que se desconfia conduzir contrabando de guerra para os estados do Sul da América, e o federal de guerra Kearsage, dando caça àquele. O inglês tomou aqui carvão, e ontem, pelas 11 horas da manhã levantando ferro e fazendo proa de leste, foi imediatamente seguido pelo Kearsage. Havendo ambos passado além dos ilhéus e junto da costa, o vapor inglês, que então ia pela popa do federal, virou de bordo aproando a sudoeste, e chegando aos ilhéus meteu-se pelo pequeno braço-de-mar que há entre eles e por onde ao Kearsage não foi possível segui-lo por ser navio de maior lote, vendo-se por isso obrigado a tornear os mesmos ilhéus. Com este estratagema distanciou-se bastante o vapor inglês do seu perseguidor, correndo para o nordeste. Entretanto, ao que parece, foi apresado; pois que 6 horas depois o vimos passar em frente desta baía, e a pequena distância, no rumo de oeste, à ré do Kearsage, e de bandeira arriada, ao tempo que naquele flutuava o estandarte federal.” Fica a dúvida.
O mastro da independência
Ainda é possível ver no cimo do
Ilhéu Grande as ruínas do pegão onde esteve colocado um tubo em ferro que, segundo me dizem serviu de mastro à bandeira independentista dos Açores (bandeira da Frente de Libertação dos Açores - FLA), aqui içada por volta de 1975. A ser assim, este
mastro da independência deverá ter sido colocado neste local especificamente com essa finalidade, mesmo porque não lhe conseguimos encontrar outra finalidade.
Azores DX Group
Nos dias 3, 4 e 5 de julho de 1992, elementos do grupo de radioamadores
Azores DX Group organizaram uma expedição aos ilhéus das Cabras, mais propriamente ao
Ilhéu Grande. Esse exercício de comunicações teve por objetivo
ativar a referência internacional IOTA - EU 003 como sendo os Ilhéus das Cabras. Para o efeito contaram com o apoio de um helicóptero da Força Aérea Portuguesa que transportou uma parte da logística necessária, desde o aeroporto das Lajes até ao ilhéu. A outra parte “subiu” pelo ilhéu acima, numa espécie de trenó adaptado para essa função, com o auxílio de cordas e de quem os empurrasse. Foram cerca de 900 Kg de materiais, onde se incluíam os equipamentos de transmissão, gerador, combustível, comida e outros. Do
Azores DX Group foram os elementos fundadores: José Gabriel Alves Silva (“Tirolé”), Luís Filipe Meneses, António Firmino de Sousa Mendes, António Simões de Oliveira e José Manuel Medeiros, aos quais se juntaram José Orlando Fortuna da Costa, Francisco Rocha, Francisco Gerardo da Silva Godinho, Bernardo Leonardo Rocha e Pedro Manuel Teixeira Pereira. Este último elemento era da Marinha e foi convidado por ser conhecedor de código morse.
A ida para o ilhéu foi feita numa embarcação do Clube Náutico de Angra do Heroísmo que levou o grupo desde o Cais da Figueirinha até ao ilhéu e os trouxe de volta 3 dias depois, num regresso mais atribulado que o previsto. Durante o tempo que durou a expedição, havia uma pequena embarcação de borracha que se manteve de prevenção e que teve de fazer algumas viagens até ao Porto Judeu.
Paulo Barcelos – CMAH
1 Dizia Vitorino Nemésio em 1956: “Os ilhéus das Cabras não tinham cabra alguma…”
2 Maria Alice Borba Lopes Dias regista a expressão: “Teimoso nem carneiro do ilhéu” porque diziam-lhe que “os carneiros criados nos ilhéus das Cabras, junto à costa sul da Terceira são considerados os mais teimosos de todos.”
3 O padre António Cordeiro na sua obra “História insulana das ilhas a Portugal sugeitas…” limita-se a copiar alguma desta informação.