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Igreja da Misericórdia de Angra do Heroísmo

A 15 de março de 1492 João Vaz Corte Real, primeiro Capitão do Donatário de Angra, terá firmado junto com João Borges (Ordinário de Angra), Afonso da Costa e outros confrades, um Compromisso, documento que definia os objetivos pelo qual se instituía nesta ilha a Confraria do Espírito Santo e o Hospital de Angra. As confrarias instituíam-se em templos, pelo que nessa data provavelmente já existia a Ermida de Santo Espírito, uma das primeiras da ilha, ou então surgiu logo depois, embora não se veja referida a intenção da Confraria do Espírito Santo na construção desse templo, mas sim na construção de um hospital. A Rua de Santo Espírito, que tomou o seu nome a partir do nome da ermida, será provavelmente a mais antiga a ligar a baía de Angra à Memória e ao Outeiro, onde a urbe ter-se-á desenvolvido nos seus primórdios, fazendo continuidade pela Rua da Garoupinha e Rua Frei Diogo das Chagas.

Foram franciscanos os primeiros religiosos que se instalaram nas ilhas e que partilharam com os primeiros povoadores as agruras do isolamento. Provavelmente eram seguidores dos ensinamentos de Joaquim de Fiore, defensor de uma vida terrena sem hierarquias onde todos fossem iguais numa partilha solidária. É referida uma Irmandade do Santo Espírito que repartia o bodo pelos pobres em dia de Pentecostes à porta da Ermida de Santo Espírito. Assim se terá dado, possivelmente, início na ilha à tradição do culto ao Divino Espírito Santo e instituídas as respetivas Irmandades.

A Ermida de Santo Espírito localizava-se então sensivelmente onde hoje está a Igreja da Misericórdia, com a fachada virada à Rua Direita e tardoz para a Rua de Santo Espírito, possibilitando a prática da época de se orar virado para oriente, para Jerusalém. Porque aos Irmãos da Confraria do Espírito Santo assistia a prática das Obras de Misericórdia, nomeadamente a obrigação de enterrar os mortos, era no chão desta ermida que se faziam as inumações dos irmãos falecidos.

Nos anos que se seguiram a 1492 (há quem aponte a data de 1495) surgiu no lado nascente da Rua de Santo Espírito o Hospital de Santo Espírito, estabelecido logo depois de instituída a Confraria do Espírito Santo que se apressou a apresentar a El-Rei D. João II a pretensão de que este hospital, o primeiro dos Açores, tivesse real proteção, o que viria a ser aceite pelo seu sucessor El-Rei D. Manuel, por alvará em 15 de março de 1502, criando-se a obrigação de tratar não apenas a população necessitada, mas também de admitir os debilitados que chegassem das viagens marítimas. Era o grande e proveitoso refúgio de muitos enfermos e pobres da terra e de muitos mais que pelo mar vêm de fora, de muitas partes, por ser o porto desta cidade escala de muitas navegações.

Tendo João Vaz Corte Real falecido em 1496 já não terá assistido ao surgimento da Casa da Misericórdia de Angra a partir da Confraria do Espírito Santo, segundo consta em 1498. Não é possível precisar o dia, mas terá sido forçosamente depois da Casa da Misericórdia de Lisboa, a primeira do país a ser instituída também a partir da Confraria de Caridade de Nossa Senhora da Piedade que já existia, segundo se pensa a 15 de agosto desse mesmo ano, pois o Compromisso original ter-se-á perdido aquando do Terramoto de 1755. O mais antigo alvará, referido por Maldonado, quando se refere aos privilégios da Casa da Misericórdia de Angra, tem data de 2 de novembro 1498. Dez anos depois El-Rei D. Manuel, por alvará de 3 de agosto de 1508 oficializa a constituição dessa irmandade de 13 irmãos. Irmandade e Ermida eram referidas por Casa da Misericórdia de Angra, como se da mesma coisa se tratasse.

É dito que, quem desembarcava no porto de Angra e entrava pela porta do mar na Rua Direita encontrava à sua direita esta Casa da Misericórdia de três naves e três portais, fundada por El-Rei e aumentada depois por várias pessoas. Alinhada com o casario, acabava por ser uma igreja pouco profunda, devido à Rua de Santo Espírito, compensado em largura, o que a tornava desproporcional em relação à arquitetura habitual. O interior apresentava três “como que altares-mor e outros vários à roda e todas as casas e repartições que costuma ter uma nobre Misericórdia.” No entanto, observando a famosa carta de 1595 de Jan Huygen van Linschoten, vemos o que parece ser um edifício de uma só nave, com apenas uma grande porta virada à Rua Direita, com um óculo por cima e um segundo corpo, anexo à parte mais recuada da fachada sul, apresentando uma escadaria de acesso a outra porta, que provavelmente serviria para compensar o desnível e aceder ao piso térreo da igreja, tal como acontece hoje com a escadaria principal da atual igreja. Uma vez que a imagem não é clara, poderia esta escada ser um acesso à passagem suspensa que segundo desenho de Linschoten ligava a Ermida de Santo Espírito ao Real Hospital. Este passadiço sobrelevado que cruzava a Rua de Santo Espírito teria por função facilitar a ida de pessoas do hospital até um eventual “coro alto” da ermida, para assistir às celebrações eucarísticas. A verdade é que continua a parecer-me desnecessária tal estrutura. Funcionou o hospital até 1836 neste local onde hoje está instalada a GNR e serviços da alfândega.

A atual imponente e bonita Igreja da Misericórdia, pertença da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo, um dos principais símbolos da cidade, foi construída no século XVIII. Respeitando todas as formalidades, a 21 de outubro de 1728 foi lançada a primeira pedra para a construção deste sumptuoso edifício pelo Bispo da Diocese D. Manuel Álvares da Costa, a que assistiram autoridades religiosas, civis e militares e população em geral. A nova igreja, consagrada ao Senhor Santo Cristo cuja imagem aqui se venera foi construída no espaço ocupado pela anterior e por duas casas de habitação que foram demolidas, crescendo assim em todas as dimensões. Foi mestre desta grande obra o arquiteto Manuel d'Andrade, que fez dela uma das mais elegantes igrejas da ilha. Calcula-se terem sido gastos nesta grandiosa obra a quantia de 350 mil cruzados. Durou a sua construção quase duas décadas. A 4 de junho de 1746, por comissão do Bispo D. Fr. Valério do Sacramento, foi benzido este templo pelo vigário-geral Manuel dos Santos Rolim, mestre-escola da Sé.

Voltada ao mar, quem entra na baía de Angra não pode deixar de se confrontar com o esguio e imponente frontispício da Igreja da Misericórdia, que sobressai pela sua dimensão e pelas cores garridas que contrastam com o casario envolvente. A igreja, de planta retangular, apresenta as cantarias exteriores pintadas em tom azul-celeste, mantendo-se os panos das paredes em branco. O facto de se ver muito mais o azul que o branco transmite ao observador a sensação da robustez que a fachada realmente possui. A fachada principal possui duas altas torres sineiras quadriláteras, com largas e expressivas pilastras que delimitam os panos que hoje começam num arco cego, mas que durante mais de um século terão estado abertos servindo talvez de guarita. Depois sucedem-se em altura vãos de janelas intercalados com almofadas retangulares, até chegar à sineira encimadas por um zimbório octogonal em pedra.

No pano central a escadaria exterior dá acesso a um pórtico em arco, que serve de para-vento e entrada a quem chega e que, pelo interior, suporta o coro-alto, por sua vez aumentado por uma península que cobre o hall de entrada onde está localizado ao centro o órgão de tubos. Por cima do pórtico estão duas janelas com varandim, tendo entre elas uma moldura que ostenta o escudo com as armas reais portuguesas, encimado pela coroa real e que se destaca pela policromia em que está pintado. Acima deste está um nicho com cornija que, tanto quanto sei, nunca esteve ocupado. No frontão encontramos um relógio que em 1904 ainda não estava lá, tendo por cima uma pequena sineira rematada por uma cruz metálica aberta no seu interior.

Todo o interior do edifício evidencia um aspeto de solidez, com largas colunas em cantaria de fuste prismático. O corpo interior é composto por uma só nave que termina numa majestosa e ampla capela-mor, mais baixa e estreita. Tem uma iluminação natural razoável, devido à presença de janelas em todas as fachadas. As fachadas interiores apresentam-se rebocadas, estando as molduras dos vãos e outros elementos estruturais pintados de forma decorativa, ornamentados com marmoreados, em certa medida compensando a falta de talha dourada. Possui ainda dois púlpitos retangulares confrontantes.

Possui seis capelas laterais metidas nas grossas paredes por cima das quais correm, de ambos os lados da igreja, galerias com varandas sobre o interior, junto a janelas laterais. As capelas foram sendo renomeadas ao longo dos tempos, em consequência das novas imagens que foram sendo colocadas, substituindo ou não as anteriores. Do lado do Evangelho (lado da Rua Direita, começando da Capela-mor) encontramos: Capela do Espírito Santo (Pentecostes) hoje também do Crucifixo; Capela de Nossa Senhora de Fátima e de São José com o Menino, que foi primeiramente instituída como Capela de Nossa Senhora da Natividade por legado do pe. Luís Varela; Capela de Santo António, que foi inicialmente instituída como Capela da Santa Cruz, por legado do pe. João Fernandes de Freitas. Do lado da Epístola (Rua de Santo Espírito, começando da Capela-mor): Capela de Nossa Senhora da Conceição, provavelmente a mais dourada, que era anteriormente a Capela do Senhor Santo Cristo da Misericórdia, padroeiro e protetor da cidade, a quem a população devia grande devoção e à qual este templo está intimamente ligado; Capela de Santa Cecília, a mais profunda de todas, que foi inicialmente a Capela da Divina Pastora, e que apresenta ainda as imagens de Santa Teresinha do Menino Jesus e de Santo Expedito; Capela de Nossa Senhora de Lourdes, inicialmente foi instituída como Capela do Senhor Jesus das Chagas.

O arco triunfal é ladeado por duas portas, que dão acesso à sacristia, acima das quais estão intercaladas janelas, almofadas retangulares em relevo e cornijas. Por cima do arco está exposto o brasão da Santa Casa da Misericórdia de Angra do Heroísmo e por cima deste uma janela. A capela-mor, de traço semelhante à da Igreja de Nossa Senhora da Guia no antigo Convento de S. Francisco, possui um retábulo que terá começado a ser construído cerca de 40 anos depois de aberta da igreja ao culto, por José de Pene, mestre entalhador natural de Génova e residente em Angra. Neste retábulo está presente apenas o Santíssimo Sacramento e um Cristo Crucificado. Apesar de não ter informação desta ser uma igreja colegiada, existe um cadeiral com 5 cadeiras de cada um dos lados da capela-mor (as duas mais recuadas sobrelevadas). Tem oito pinturas distribuídas pelas paredes laterais, de óleo sobre tela ou sobre madeira, da segunda metade do século XVII e século XVIII. O tema em todas elas gira em volta da Anunciação e Natividade: Aparição de Cristo à Virgem; Visitação da Virgem a Santa Isabel; Adoração dos Magos; Casamento da Virgem; Assunção da Virgem; Anunciação; Apresentação da Virgem no templo; Adoração dos Pastores.

Por detrás da capela-mor está a sacristia com as respetivas alfaias, instalações sanitárias e uma primitiva bica com pia em pedra. Expostas nas paredes deste espaço encontramos alguns pedaços de talha dourada, que em tempos idos revestiram as capelas desta igreja. A Mesa da Santa Casa da Misericórdia, ainda hoje responsável por este templo, fazia no passado as suas sessões numa grande sala que está localizada sobre esta sacristia. Por contrato celebrado com a Mesa da Misericórdia, esteve também aqui instituída a ordem de Nossa Senhora do Carmo, desde 22 de fevereiro de 1766 até à tarde de 17 de março de 1804, altura em que a venerada imagem de N. Sra. do Carmo foi trasladada para a Igreja do Colégio.

O centro da igreja, com 14 bancos de cada lado e corredor ao meio, encontra-se delimitado por uma guarda balaustrada em madeira, por fora da qual, junto às capelas, estão colocadas cadeiras de estilo contemporâneo. Apesar dos lugares sentados serem suficientes quando aqui são celebradas missas, a igreja torna-se exígua aquando da realização de eventos musicais ou outros, momentos em que até as galerias superiores são ocupadas. Ao longo das paredes interiores é possível observar expostas algumas peças de arte (pintura e escultura) da autoria de diversos artistas: António Lima, Manuel Martins Meneses, Dimas Simas Lopes, Ilídio Gomes, Maria Ana simões, José João Dutra, Cecília Ribeiro, Jaime Oliveira, Carlota Monjardino, Catarina Melo e Ana Bela Mendonça.

Mercê de escavações arqueológicas realizadas no passado, é hoje possível visitar a cripta, uma galeria de alguns metros de extensão e com cerca de 2 m de altura, que foi aberta sob o soalho suspenso que forma o chão da igreja. No interior desta trincheira é possível observar antigas fundações e nos taludes fragmentos dos ossos dos últimos cadáveres aqui sepultados, que ainda subsistem. Se por um lado, as inumações no interior das igrejas cessaram há quase 2 séculos, a orientação este-oeste das ossadas parece remeter para um período mais remoto.

Com o terramoto de 1 de janeiro de 1980 esta foi uma das igrejas menos afetadas em Angra, tendo servido como depósito de arte sacra, retirada de outras igrejas, a fim de que essas avançassem mais rapidamente no processo de reconstrução. Isso levou a que o restauro da Igreja da Misericórdia terminasse bastante tarde, tendo D. António de Sousa Braga procedido a 24 de maio de 1998 à bênção e reabertura deste templo.

Esta igreja recebeu no passado a visita de algumas figuras notáveis salientando-se no dia 1 de novembro de 1858 sua alteza real o infante D. Luís na sua passagem por esta Ilha ou, a 17 de junho de 2005 os reis de Espanha D. Carlos e D. Sofia, na companhia do Presidente da República Jorge Sampaio e mulher.

A Igreja da Misericórdia foi classificada como Monumento Nacional por Decreto n.º 95/78 de 12 de setembro. Mais tarde viria a ser incluída no conjunto classificado da Zona Central da Cidade de Angra do Heroísmo por Decreto Legislativo Regional n.º 29/2004/A, de 24 de Agosto.

O Órgão
É um dos vários órgãos construídos por António Xavier Machado e Cerveira [1756-1828], um dos mais notáveis mestres organeiros portugueses, responsável por 14 dos órgãos existentes nos Açores, já na fase final da sua carreira. Aliás este órgão só terá sido concluído e expedido para a ilha Terceira em 1829, após a sua morte, quando o construtor já tinha ultrapassado mais de uma centena de órgãos construídos. Este apresenta o número 104, sendo praticamente “gémeo” do existente no Convento de S. André em Ponta Delgada, que apresenta o mesmo número, e semelhante àquele que existe na Matriz da Praia da Vitória.

Com uma caixa em armário, apresenta partes pintadas com alguns motivos musicais, caso do interior das portas que fecham a parte superior onde estão algumas dezenas de tubos, mas acaba sendo pouco rica nos ornamentos e entalhes na madeira. Encaixa-se dentro da classe dos “órgãos positivos”, um órgão que dada a sua arquitetura e dimensão reduzida era possível movimentar, como se fosse uma peça de mobiliário. Este apresenta-se na península do coro alto e terá servido na perfeição para acompanhar o canto litúrgico durante quase dois séculos e, mais recentemente, para acompanhar concertos de canto lírico, sozinho ou com pequenos conjuntos instrumentais de câmara.

Com uma largura de 1,75 m, profundidade de 1,30 m e altura de 3,70 m, apresenta tubos pequenos, fole integrado e um teclado manual de 4 oitavas completas subindo até ao Fá. Possui 12 registos, do lado esquerdo: Fagote, Clarão, Compostas de 22ª, Quinzena Flautado 6 ab, Flautado 12 tap; e do lado direito: Clarim, Corneta, Compostas de 15.ª, Voz Humana, Flauta Travessa, Flautado 12 ab. Sobre o teclado estão os dizeres “Antonius Xaverius Machado & Cerveira / Christi Militæ Eques, Organorum Regalium Rector / Anno MDCCCXXIX Nº CIV Olisipone Fecit”. Terá sido restaurado em 1998 pelo Atelier Português de Organaria, de Dinarte Machado.
Paulo Barcelos - CMAH

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Última actualização em 2022-02-21