No início da Passagem Silva Sarmento, que sobe sinuosamente até à Memória, podemos encontrar um antigo tanque, ladeado por frondosas tílias. Construído em cantaria, de formato retangular e apresentando como dimensões aproximadas 11,20m de comprimento, 6,20m de largura e uma profundidade de 1,30m, atingindo uns apreciáveis 90.000 litros de capacidade. Nas suas águas nadam tranquilamente peixes negros ou vermelhos. Este antigo tanque tinha por função conter as águas destinadas a regar as hortas dos franciscanos, que ocupavam parte significativa do “jardim de cima”. Talvez este edílico local tenha permitido também aos frades a tranquilidade e meditação que ainda hoje proporciona.
Num dos topos, embutido no muro-guarda do tanque está um pedestal com pouco mais de um metro de altura, em cima do qual está uma estátua de 1,30 m de altura a que o povo simpaticamente batizou como o Preto do jardim. Como alguém antes referiu, esta curiosa escultura parece representar uma figura híbrida, pois tal como apresenta de forma clara um cabelo tipo carapinha e feições mais comum no homem negro, por outro lado ostenta como adorno na cabeça uma espécie de cocar e à cintura o que poderá ser um saiote de palha, elementos que esperaríamos ver num índio sul americano. Parece denotar uma intenção de mostrar a origem dos povos com quem os portugueses mais estiveram envolvidos nos séculos que se seguiram aos descobrimentos: o africano da costa atlântica e o índio brasileiro. Dois conjuntos de espirais em pedra, formam como que contrafortes em lados opostos do Preto, tornando-se parte da estátua e conferindo ao conjunto uma largura total de 2,70 m.
Não há registos quanto à sua autoria, data ou proveniência. Olhando a pedra, é provável que tenha sido esculpida localmente, talvez no século XVIII. Certo é que o Preto mantém hoje a função de chafariz com que foi concebido. Sopra continuamente por um tubo de alguns centímetros que segura na mão direita um abundante jorro de água, que se despenha sobre as águas do tanque, criando um marulhar que aconchega e descontrai. Durante muitas décadas era conhecido por trazer até junto de si os jovens que vinham aqui namorar. Hoje são mais os turistas aqueles que por aqui passam.
Neste recanto se inspirou o poeta micaelense José de Oliveira San-Bento, que deixou escrito:
Meu pequenino barquinho, inda te espera
Deste lado do tanque, o meu desejo,
Lá vou em saudade, lá bordejo
Ó saudade, volta-me a embalar,
À toada do preto que, a soprar,
Bate no tanque o seu batuque de água,
In “Ilha de Glória: poemeto à Terceira”. Angra do Heroísmo, Livraria Andrade, 1960.
Na base da parede sul que suporta o tanque surge-nos outra escultura, eventualmente contemporânea do Preto, que por analogia ao nome deste é conhecida como A Preta, embora na realidade seja aqui mais difícil perceber qualquer elemento africano. É uma figura aparentemente feminina de cabelo liso, mas atenda-se ao facto de os seios em cimento que hoje existem não serem “originais”. É por eles que a água escorre para dentro de um pequeno tanque de 80 x 80 cm. As mãos estão esculpidas numa posição irreal, viradas para fora com os dedos dobrados, mas segundo parece com os polegares invertidos. Na cabeça e na cintura surgem elementos difíceis de interpretar.
Paulo Barcelos – CMAH