A água é o elemento visível mais abundante na natureza, com uma presença que toca toda a criação da Terra. Globalmente dispersa, mantém um ciclo bem definido e interventivo, com implicações em toda a vida na Terra.
A água doce foi um dos mais importantes elementos da expansão marítima portuguesa. Na aventura das descobertas, a água, biologicamente indispensabilidade à vida, traduzia a capacidade do Homem se fixar nas novas terras que procurava, ou que encontrava. Escolheu-se para desembarque e assentamento, locais onde as embarcações ficavam protegidas, onde o acesso a terra era mais fácil e onde existia água nas proximidades. Os primeiros aglomerados populacionais cresceram nas imediações das ribeiras ou próximo de nascentes onde a água estava disponível durante todo o ano, para consumo do homem e dos animais domésticos.
As águas das ribeiras de regime torrencial eram aproveitadas enquanto duravam, resumindo-se por fim àquela pouca que ficava retida nos poços dos seus leitos, e que a necessidade levava a que fosse utilizada para diversos usos domésticos e para beber, num equilíbrio precário entre estes usos. Com o tempo tornou-se forçoso aprovar e fazer cumprir posturas municipais, para que práticas desaconselháveis não comprometessem tais reservas de água. Nessa época falava-se em salubridade da água, qualidade definida por parâmetros que imperaram até meados do século XX. Era então suficiente que a água se apresentasse limpa, cristalina, sem cheiros e agradável ao paladar… mesmo que não fosse potável.
Embora com problemas no acesso a este bem, a água era então um recurso que podemos considerar abundante, embora, ao contrário de hoje, muita daquela que descia ao subsolo se tornasse indisponível. A Natureza geria a água de outra forma: todas as nascentes viam a luz do sol e as ribeiras corriam com maior frequência e abundância.
O contínuo desbravar da floresta virgem para agricultar os terrenos, levou à construção de núcleos populacionais cada vez mais afastados das fontes de água, obrigando a população a percorrer quilómetros para poder encher algumas pipas, em nascentes modestas, muitas das quais secavam no estio. A necessidade de evitar a continuidade de tão árdua tarefa e de suprir a carência nos meses mais secos, obrigou a encontrar formas de reservar a água para o consumo, surgindo assim os primeiros tanques e cisternas. Tornou-se então possível captar alguma da água que caia sobre os telhados das casas e armazená-la nestas cisternas que, com um peixinho ou dois, constituía a mais avançada e eficiente tecnologia de armazenamento existente na época. Estes anexos passaram a integrar a arquitetura rural das nossas habitações.
Para abastecer o gado nos terrenos agrícolas faziam-se poços escavando-se um buraco no solo, batendo o fundo, compactando-o até o tornar impermeável. Construía-se em redor paredes em pedra e uma cobertura geralmente em abóbada feita em bagacina. Alguma água que escorria superficialmente era por vezes canalizada para tanques rudimentares ou depressões naturais existentes nos terrenos.
Na ilha Terceira desenvolveram-se três núcleos populacionais iniciais, com importantes referências à presença da água. Porventura o caso mais curioso será o da Vila de São Sebastião, por haver quem refira ter sido a Ribeira do Frei João, que lançava as suas águas sobre o mar, a chamariz para que aí tivessem desembarcado os primeiros povoadores e, junto a essas nascentes, tivessem iniciado o primeiro assentamento na ilha. Aqui, muitos moradores abriram poços nos redutos das suas casas, de onde extraíam água de um aquífero suspenso. A abundância desde recurso permitiu que a partir de meados do século XIX e durante mais de um século, houvesse em São Sebastião terras de regadio. Eram cerca de 450 alqueires, do Arrabalde até ao mar, entre o Pesqueiro dos Meninos e os Salgueiros, irrigados com água proveniente das nascentes da Furna do Cabrito, numa levada com mais de 8 km de extensão, a maior feita até então, permitindo cultivar no mesmo ano trigo e milho, e obter melhores produções que nas terras vizinhas.
A Praia, por sua vez, tinha um paul de consideráveis dimensões onde ia beber o gado, e dezenas de poços de água que serviam a população. Também na Vila das Lajes, face à superficialidade do lenço freático, descia-se ao interior de uma gruta para aí aceder a nascentes subterrâneas. Em freguesias como São Mateus, Porto Judeu, São Sebastião, Biscoitos e Vila Nova havia poços de maré que as pessoas usavam no período de baixa mar para beber e para outros usos.
Em Angra, para conforto de quem aqui se fixou, existiam providenciais nascentes nas suas imediações, que corriam todo o ano e que abasteciam ribeiras e grotas. Foi aqui que se desenvolveu o primeiro projeto de encaminhamento de águas da ilha, desde as nascentes do Morião até à baixa da cidade. A Ribeira dos Moinhos, ainda no século XV, foi a primeira dessas redes, responsável por dar a Angra considerável vantagem sobre a Praia. Aqui, a abundância em água supria o consumo da população local, o consumo das populações vizinhas, e era ainda aproveitada no asseio das casas, na limpeza do espaço público e na indústria, principalmente como força motriz de engenhos.
Foi a construção das primeiras canalizações de água uma importante inovação técnica. O transporte era feito em calhas abertas de cantaria, ou em canos de barro argamassados. Por volta de 1575, quatro chafarizes públicos que existiam em Angra: na Rua dos Canos Verdes, Alto das Covas, Rua Direita e Praça Dr. Sousa Júnior, corriam com água vinda da Nasce Água e do Cerrado das Fontes (hoje Fonte da Telha).
Em 1605 é construído o muito falado Cano Real, que encaminhava as águas de fontes nas imediações da Nascente do Milhafre, abastecendo a cidade praticamente todo o ano e contribuindo para uma enorme proliferação de chafarizes, segundo consta mais de duzentos, públicos e privados. O caudal ia sendo repartido em arquinhas ou noutro tipo de derivações, terminando invariavelmente numa bica inserida num espaldar chamativo, e quase sempre com um tanque associado. Da bica bebiam as pessoas, do tanque bebiam os animais.
Os chafarizes eram obras de interesse público. A sua localização era condicionada pela forma como a rede de abastecimento se expandia, mas tendo em conta a facilidade de acesso da população. Foram sendo edificados nas ruas e praças de Angra, estrategicamente colocados nos locais de maior confluência de pessoas. De alguns desses chafarizes ainda existem evidências, mas muitos terão já desaparecido.
Angra oferecia comodidade e bem-estar, muito devido a essas copiosas bicas de água e chafarizes que existiam nas ruas da cidade, mas também porque, desde cedo, as casas conventuais e as particulares mais abastadas tinham água dentro, de que tiravam proveito para consumo doméstico ou recreação.
Com o passar do tempo, a estética da arquitetura dos chafarizes tornou-se mais refinada, ao ponto de começarem a ser utilizados também como motivo de embelezamento de espaços públicos e privados.
No decorrer do século XIX e até à primeira metade do séc. XX, dá-se a democratização da distribuição de água às populações. Com avultados investimentos públicos no encanamento das águas, a ilha ficou praticamente coberta por uma rede de chafarizes que abastecia os principais aglomerados populacionais. A água das nascentes exploradas pela edilidade angrense ou pelas Obras Públicas chegava confortavelmente junto de pessoas e animais. Com as pias e lavadouros públicos, que começaram a proliferar junto dos chafarizes, já ninguém se lembrava do que era lavar roupa na ribeira.
Com o tempo, os tradicionais canos de barro e cantarias foram substituídos por tubagens de materiais sintéticos e impermeáveis, permitindo um sistema de abastecimento pressurizado, com as vantagens que daí advinha.
Hoje, tudo é um pouco diferente, até a origem da água, que no verão sobe os furos que ajudam a compensar a falta nas nascentes. A acompanhar toda essa evolução tecnológica, cresceu também a consciencialização para a necessidade de gerir e proteger os recursos hídricos, surgindo novas imposições na forma de leis.
Mas, o queremos aqui salientar é a Arquitetura da Água enquanto construções históricas, e essas felizmente ainda está bem visível entre nós. Estão presentes na origem, captação, armazenamento, condução, repartição e disponibilização deste recurso até chegar à população. A construção humana vê-se junto às nascentes, nas casas-da-água, calhas, tubos e aquedutos, cisternas e reservatórios, arquinhas e chafarizes, pias, lavabos, lavadouros e bebedouros, moinhos, serras-de-água e outros engenhos. Mais uma vez, a mensagem é a mesma: é urgente conhecer, salvaguardar e divulgar tão importante património.
Paulo Barcelos – CMAH