Angra do Heroísmo 38º 38’ 33” N, 27º 12’ 48” W
Ao princípio era a Natureza moldada pelo fogo, pela chuva, pelo vento e pelo mar. A costa sul da ilha, ao tempo ainda sem nome senão talvez o de Ilha do Brasil, levantava-se em escarpas e penedos basálticos, de quando em quando cortados por uma veia de água. Sensivelmente a meio, o recorte da linha de terra era mais acentuado: uma península de formas abruptas avançava pelo mar adentro após três épocas de convulsão vulcânica, erguendo-se como uma muralha providencial contra os ventos do Oeste. Entre essa península e a uma ponta rochosa a nascente dela é que surgiu a angra, abrigada e profunda. Porto natural único, essencial para a navegação nestas partes do Atlântico… mas a partir de que terreno! Duas arribas caíam sobre o mar. No meio delas desaguava uma ribeira que antes se despenhara de um cabeço escarpado, formava um charco e daí corria, como uma grande ferida aberta, até à sua foz. O desafio estava em tudo isso. Aquele porto natural não podia perder-se e a povoação inevitavelmente nasceu – contra a Natureza mas afinal por causa dela. É a Álvaro Martins Homem, na segunda metade do século XV, que se deve esse nascimento: a ele e à visão de navegador que efectivamente tinha, por o ser. O próprio nome da incipiente povoação (>ancra, >anchora) mostra a razão da escolha do local, apesar dos obstáculos orográficos que possivelmente terão afastado Jácome de Bruges, o primeiro capitão da Terceira (1450) para os lados da Praia, onde se preferiu fixar-se. O local por ele deixado a Álvaro Martins possuía aquele porto natural, pequeno mas profundo, que era o mais abrigado dos Açores de então. Por acréscimo, uma grande abundância de águas doces e correntes convergia tanto sobre a enseada como até para nascente dela – uma outra reentrância costeira que ainda hoje se chama as Águas. Álvaro Martins Homem terá percebido em qualquer caso, e sem embargo do acidentado do terreno, estar ali o embrião de uma urbe marítima e com futuro. Enquanto os primeiros habitantes se agrupavam no alto do Corpo Santo, a um tempo próximos do mar e defendidos dele e de seus perigos, Álvaro Martins Homem empreendia a realização da obra que iria dotar a povoação nascente com uma autêntica infra-estrutura industrial. Essa obra foi a levada da Ribeira dos Moinhos. As águas soltas e torrenciais, modeladoras daquelas escarpas e do profundo canyon que as conduzia ao mar, foram captadas acima daquelas e feitas correr, por um declive suave e desenvolvido em curva, num leito artificial de pedra lavrada, com abóbadas e câmaras de descarga. A levada, desenvolvida desde os altos hoje chamados de São João de Deus até ao que fora a embocadura natural da ribeira, veio a permitir também a criação de um espaço plano onde antes existira uma garganta a céu aberto. Nesse novo espaço viriam depois a situar-se a casa municipal e a praça central da futura cidade. Ao longo da levada, tornada fonte de energia motriz, implantaram-se doze moinhos, alcaçarias para curtimenta e um pisão de linho ou de pastel. No alto do morro a que naturalmente se chamou Outeiro veio a construir-se, ainda no século XV, uma primeira fortaleza defensiva, logo depois com casas na sua encosta. De seu nome castelo de São Luís (ou de São Cristóvão) o povo depressa lhe deu o de castelo dos Moinhos. Dali se descia até ao mar por um caminho que acompanhava as margens da ribeira no seu curso final. Desse caminho subia-se, por ruas estreitas e íngremes, ao outro núcleo primitivo, dos marítimos, empoleirado sobre a falésia de nascente sobranceira ao mar. Próximo do cais vieram a abrir-se bicas de água para abastecimento das embarcações que à beira delas varavam. A poucos metros ali ao lado, aproveitando ainda as últimas braças da ribeira que garantia uma vida económica à nova povoação, a irmandade do Santo Espírito fundou um hospital. Estava-se no dia 15 de Março de 1492. A esse tempo ainda nem Cristóvão Colombo obtivera a licença para a empresa das Índias. Mas a costa de África achava-se já descoberta até ao Cabo da Boa Esperança. Vinha oiro da Mina pela volta do largo. E navegantes dos Açores pescavam nos mares da Terra do Bacalhau. Muito mais haveria nas décadas seguintes, mas aquele nascia já como um hospital do mar.
Com o tráfego marítimo em aumento chegava uma correspondente prosperidade. Já então vila e logo cidade a partir de 1524, a povoação cresceu durante todo o século XVI. Ao lado da embocadura estava o cais, de uma banda a alfândega, da outra o matadouro. Os moinhos do capitão desciam desde o castelo sobranceiro à casa que ele fizera construir. A nascente, dominando o casario dos marítimos, erguia-se a casa do Provedor das Armadas e Naus da Índia, o Armador, como o povo simplesmente lhe chamava. Vinha agora prata das Américas, vinham riquezas do Oriente e do Brasil. Chegavam também flotilhas de guerra e mercadores estrangeiros. Já não era a pequena acrópole do Outeiro, já não era a póvoa dos marítimos da Rocha. No mesmo ano em que passou a cidade, Angra ganhava bispo como cabeça de uma nova diocese que abrangia as nove ilhas dos Açores. E crescia, com ruas largas e regulares, o seu pelourinho, a sua praça, a sua câmara e um eixo transversal, de leste a oeste, do Alto da Conceição ao Alto das Covas e à antepara protectora dos ventos que eram as casas de São Gonçalo. O movimento portuário do século XVI atraía os perigos da pirataria atlântica, daí ser já quinhentista o primeiro aparelho defensivo da frente marítima da cidade. Desde o Porto de Pipas até ao Monte Brasil, tudo o que não fosse muralha natural tinha já uma construção protectora e fechada com portas – uma face severa que, não parecendo acolhedora efectivamente o era para quem chegava acossado pelos perigos do mar. Para lá dessa frente, sente-se a mão de um urbanista sem nome, sensível à meteorologia dominante, no risco das novas ruas. Afluíam operários, surgiam conventos, igrejas, solares, e os relevos mantidos do terreno aproveitavam-se para implantações monumentais. Contra as regras antigas, a nova catedral virava ousadamente a fachada a norte, a igreja dos Jesuítas, mais tarde a da Misericórdia, voltavam as frontarias para o sul. Não se faziam mais escadinhas, faziam-se escadarias. E as novas fortalezas – sentinelas do porto as portuguesas, baluarte contra mar e terra a espanhola – imprimiam a Angra o seu skyline castrense de encruzilhada atlântica marcada pelas novas tensões internacionais estendidas à escala dos oceanos. Era um cenário talhado pela História e para a História: que nela jamais deixou de se escrever. No princípio do século XVII Angra recebeu as primeiras calçadas, dotou-se com uma rede de abastecimento de águas e começou a ganhar as características monumentais que lhe haviam faltado até essa altura. A primeira manifestação destas características foi a nova catedral, projectada ainda no século XVI e logo o castelo de São Filipe do Monte Brasil. A enorme fortaleza – o maior monumento de Portugal – potenciava até ao exagero o aparelho defensivo do porto, já assegurado desde 1570 pelo castelo de São Sebastião, sobre o flanco oriental da angra, e pelos pequenos fortes erguidos do lado oposto, na orla da península. A desmesura do castelo filipino, cuja área fortificada equivalia à do resto da cidade, marcaria de então em diante a fisionomia e boa parte da sua própria História. São ainda do século XVII a renovação das muralhas da alfândega e a construção dos outros maiores edifícios religiosos.
No século seguinte, os efeitos do terramoto de 1 de Novembro de 1755, que arrasou Lisboa atingindo física e mentalmente quase toda a Europa, deixaram sinais na fisionomia de Angra. O maremoto por ele ocasionado atingiu os Açores sob a forma de três sucessivas vagas de mar que invadiram a terra até lugares nunca alcançados segundo a memória dos homens. No refluxo, contam relatos da época, levaram as muralhas da alfândega e as do matadouro, deixando os navios a seco ou com as âncoras a descoberto e arrastando todos os barcos ali varados. Onze anos volvidos criava-se a Capitania-Geral dos Açores, sedeada em Angra. A sua marca arquitectónica logo se patenteou na transformação da casa dos Jesuítas em palácio do governo. Com a frente marítima da cidade ainda desfigurada pelos efeitos do tsunami de 1755, o primeiro Capitão-general determinou-lhe a reedificação, que alterou significativamente a face severa que Angra apresentara até às devastações então sofridas. O torreão em que se abria a porta do mar desapareceu sob uma esplanada donde descia uma escadaria dupla, abraçando um chafariz e rematada ao alto por dois arcos. O conjunto procurava já um claro efeito monumental, harmonizando-se com a nova igreja da Misericórdia, que substituía do anterior templo quinhentista, com uma fachada avançando para sul, voltada ao mar. Era um enquadramento de aparato dantes inexistente e uma alteração funcional na entrada marítima da cidade. Esta mudança, originada numa catástrofe natural e operando uma adaptação aos novos tempos, duraria afinal até àquele em que vivemos.
Muito do característico no actual casco histórico da cidade – no lado dos seus habitantes, que o fizeram e fazem vivo – tem a marca de uma época usualmente só referida a episódios heróicos e revolucionários: a da viragem para o liberalismo português. Liberal sem grande convicção (para não dizer mais ou menos à força, como o resto do país) a ilha Terceira foi, em um momento, o último reduto, depois a verdadeira testa-de-ponte dos constitucionalistas portugueses. Em 19 de Outubro de 1830 se hasteava no porto de Angra, pela primeira vez em Portugal, a bandeira azul e branca do novo regime. Sede do Governo Provisório, depois da Regência, a cidade veria também da aí por diante a sua fisionomia alterada pelas sequelas da revolução. Três aspectos marcam esta alteração, todos vindos até aos nossos dias. O primeiro aspecto, ideologicamente subversivo, teve bastante de utilitário e funcional, com a conversão de edifícios religiosos em profanos. Extintos os conventos – como já fora, anteriormente, o colégio jesuíta – apareceram os usos civis para as suas casas, que passaram ora a hospital, ora a cadeia; ora a escolas públicas ora a asilos, ora a meros fins habitacionais. Depois o segundo aspecto, com uma intensa nota sócio-económica. A aristocracia terratenente, marialva e de poucas letras, inepta para administrar o que tinha, desamparada pela legislação que abolira os morgadios e seus vínculos, privada de deveres e privilégios militares específicos, entrou num plano inclinado de que jamais se reconstituiria. E a cidade emburguesou. Uma nova classe social emergia – para não dizer, com maior precisão, que desembarcava. As ruas da Baixa, com a sua bela grelha quinhentista, recebiam em suas lojas homens de negócios, quase todos vindos do Continente português e que animaram um novo sector terciário havia muito quase inexistente. Criou-se um mercado de frescos, outro de gado e um jardim público, a expensas de antigas cercas conventuais. A maior renovação das fachadas é essencialmente desta época, com o seu paradigma na nova Câmara Municipal, a terceira que a cidade conheceu. À câmara seiscentista, com enxovias, escadas exteriores, alpendre e torre sineira, substituía-se o edifício neoclássico copiado à justa da antiga câmara do Porto e sobrepujado por uma figura feminina que tanto podia ser a Atena grega como a Britannia do hino vitoriano, com plumas no capacete e um açor em punho, qual falcão no guante do caçador. Finalmente, a negação romântica do passado por um monumento carregado de intenções. Acrópole da cidade, o velho castelo dos Moinhos estava desactivado por inútil, relíquia esquecida da era senhorial, construído que fora pelo primeiro capitão de Angra sobre o cabeço rochoso que dominava o casario urbano. Nesse mesmo alto onde houvera as suas muralhas se ergueu, em gesto ostensivamente simbólico, uma pirâmide de pedra à memória de D. Pedro IV, o imperador-rei. Era o marco afirmativo, porventura acintoso, da mudança havida – assinalando, no próprio sítio em que assentara a expressão física do antigo e extinto poder, que um mundo novo havia nascido. E de facto foi radical a mudança. Mais depressa Ainda do que se sumiam as fortunas dos antigos terratenentes, o próprio pelourinho da cidade desapareceu, apeado, sem dele jamais se saber o rasto. Nos últimos cento e tal anos o porto de Angra sofreria outras alterações, com as estradas marginais escavadas nas duas arribas. Mas o seu tráfego reduzia-se às meras necessidades locais. A construção, na Praia da Vitória, do novo porto da Ilha Terceira, tiraria ao velho cais da Alfândega a sua antiga função, deixando-o em mero complemento pedonal do porto de recreio a que a angra histórica se acha hoje reduzida, assim se fechando um ciclo portuário que há muito se esbatia.
Passados que assim se acham a grande navegação à vela, o bulício portuário dos outros tempos, o martelar dos estaleiros, algo todavia permanece. Porque quase intacto e até vivo e nobre (quiçá por força do que foi perdendo e de algum modo a fez parar no tempo) ficou na verdade o testemunho desta cidade portuguesa e atlântica, protagonista dos Descobrimentos e da sequente expansão marítima que fez da Terra uma só. É isso que mundo culto, aos poucos e poucos, entre incrédulo e surpreendido, vai começando por seu turno a descobrir. Esta perspectiva tem crescido a partir de 1 de Janeiro de 1980. O terramoto que nesse dia abalou os Açores actuaria como um despertador para os seus moradores e responsáveis políticos, dando-lhes uma consciência aguda do que esta cidade significava e valia como conjunto único do ponto de vista histórico, de soluções urbanísticas e mesmo de vida em comunidade. Peritos da UNESCO, na decorrência de uma visita a Angra logo após o sismo, sugeriram a possibilidade da inscrição do seu conjunto histórico na lista do Património Mundial. Os trabalhos preparatórios do processo de inscrição levaram, naturalmente e sobretudo quem os fez, a redescobrir a cidade na sua História, no ímpeto marítimo e universalista que foi a sua razão de ser, nas disputas internas e internacionais que de uma maneira ou outra a atingiram. Angra, dormitando no século XX e, na altura, até meio destruída, revelava-se como a cidade transatlântica por onde transitavam o oiro e a prata da América, as especiarias do Oriente, o açúcar e as madeiras do Brasil, tudo trazido na rota dos alísios, que também atraía os grandes corsários e as frotas em busca do domínio do Atlântico. Uma dinâmica de dois ou três séculos fixara-se e documentava-se nas fortalezas imponentes, nas igrejas e nos conventos desproporcionados, nas ruas bem alinhadas... Desenhavam-se as linhas da primeira globalização, desde o Oriente à Europa, da Europa ao Novo Mundo, com as centralidades que ela implicou. Foi assim e por força disto que, em Dezembro de 1983, esta cidade quase desconhecida e como que perdida no meio do oceano e no olvido da História, ficou inscrita na lista do Património Mundial.
Alvaro Monjardino
(in Angra Cidade Transatlântica. Edição Câmara Municipal de Angra do Heroísmo 2005)